O fim da Hollywood brasileira

jun 30, 2020 by

Deixemos claro: não temos Hollywood como a melhor referência de conteúdos. Mas, é inegável sua influência sobre os gostos e preferências culturais da sociedade brasileira. Isso impacta fortemente nossos valores. Acabamos consumindo largamente os bens culturais norte-americanos em detrimento dos nossos e dos latino americanos.

Em 2011, com a aprovação da Lei 12.485, Lei do Serviço de Acesso Condicionado (Lei do SeAC), houve um grande impacto  na cadeia de valor da TV por assinatura, com o fortalecimento da cultura nacional. Conforme relatório de 2018 da Ancine, “desde a promulgação da Lei a produção nacional para a TV paga vem apresentando constante fortalecimento”. Já os Resultados Mensais de TV Paga do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA), aponta que os canais de espaço qualificado tiveram, até dezembro de 2018, 8,8% da sua programação voltada para obras brasileiras, sendo 5,5% para obras independentes. Já os chamados “canais brasileiros de espaço qualificado”, das programadoras brasileiras, tiveram um percentual de 55,7% da sua programação ocupados por obras nacionais, sendo 36,3% independentes.

A Brasil Audiovisual Independente (Bravi) reforça essa visão: “é graças ao sucesso dessa política que a indústria audiovisual brasileira emprega, hoje, centenas de milhares de profissionais e agrega cerca de R$ 25 bilhões por ano à economia. De menos de 10 filmes por ano, no final da década de 1990, a produção nacional chegou a quase 200 longas-metragens nos últimos anos. A presença de obras nacionais nos canais de TV por assinatura passou de 1% para 18% em menos uma década, período em que se formou a maior parte da capacidade produtiva que hoje atende também os segmentos de TV aberta eVoD. Essa política é também a principal responsável pela construção de um acervo de obras protegidas por direitos de propriedade intelectual cuja titularidade pertence a brasileiros”.

Em resumo, a Lei da TV paga impactou positivamente, com séries, documentários, filmes brasileiros, o mercado de TV por assinatura.  Esse é o centro do debate.

Ocorre que há, tanto no Governo Federal quanto no Congresso Nacional, na Ancine e na Anatel, um movimento para acabar com os espaços conquistados pela cultura nacional na TV paga. Travestida de uma discussão técnica querem acabar com os efeitos positivos da Lei do SeAC.

Vamos usar, para facilitar o entendimento, a consulta pública realizada pela Ancine e encerrada no último dia 25 de junho na qual se coloca para debate o serviço de oferta de conteúdo audiovisual em programação linear via internet.

A consulta recai sobre a caracterização deste serviço de oferta de conteúdo. Ele seria atividade de Distribuição, nos termos do inciso X, art. 2º da Lei 12.485/11, sendo considerado Serviço de Acesso Condicionado (SeAC)?  Ou seria considerado um Serviço de Valor Adicionado – SVA, nos termos do art. 61 da Lei Geral de Telecomunicações – Lei 9.472/97?

A primeira opção igualaria, do ponto de vista regulatório, o tratamento do serviço de oferta de conteúdo audiovisual ao dos serviços existentes de TV Paga. Já a segunda conferiria a este serviço o tratamento análogo aos dos serviços de Vídeo sob Demanda – VoD, ou seja o fim das cotas de conteúdo nacional colocadas na Lei 12.485.

A Abert, TAP, MPAA e Câmara e-Net, que representam interesses de grupos como Globo, Warner Media, Disney, Amazon, Facebook, Apple, Google, empresas de telecomunicações como Telefônica, Oi e Sky são favoráveis a um tratamento flexível dos modelos de oferta de canais pela Internet, leia-se o fim da obrigação das cotas de conteúdo nacional.  Do outro lado estão a Associação Neo , os produtores independentes de TV.

Nós, do Instituto Telecom, concordamos com a Bravi que diz: ” a oferta de conteúdo audiovisual de forma linear, seja por meio de canais avulsos ou pacotes de canais, constitui Serviço de Acesso Condicionado – SeAC, independentemente da tecnologia empregada. É essa a determinação do art. 2º, inciso XXIII da Lei 12.485/2011, que desde a sua concepção tem como princípio básico a neutralidade tecnológica. Em outras palavras, é a natureza do serviço – disponibilização de conteúdo audiovisual sob a forma de canais (conceito que, nos termos do art. 2º, IV, da Lei 12.485/2011, caracteriza-se precisamente pela linearidade), avulsos ou organizados em pacotes – que define o serviço, não a tecnologia pela qual se dá a distribuição ao consumidor final”. A tecnologia não pode servir de desculpa para acabar com a obrigação das cotas de conteúdo nacional na TV paga.

A Lei 12.485/2011 mostrou-se eficaz na valorização da cultura nacional, no fomento de postos de trabalho qualificados no âmbito da TV paga, estabelecendo cotas nacionais, aumentando o recolhimento da Condecine (Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional).

É preciso usar esse sucesso para avançarmos num amplo processo de modernização da legislação brasileira de telecomunicações guiando-nos pelos princípios da promoção da diversidade cultural e das fontes de informação, produção e programação; promoção da língua portuguesa e da cultura brasileira; estímulo à produção independente e regional;  estímulo ao desenvolvimento social e econômico do País.

Não podemos aceitar o fim da Hollywood brasileira.

Instituto Telecom, Terça-feira, 30 de junho de 2020

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