Internet: um debate ainda no cocuruto do iceberg

mar 28, 2023 by

Excepcionalmente, o Instituto Telecom publica esta semana artigo do professor Marcos Dantas, Professor Titular da Escola de Comunicação da UFRJ, conselheiro eleito do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).

Em 2021, as receitas da Alphabet somaram USD 257,6 bilhões. Desse total, 46% foram obtidos nos Estados Unidos, onde tem sede, 31% na Europa e Oriente Médio, 23% no Canadá, América Latina, Extremo Oriente. Ou seja, 54% das receitas da Alphabet são extraídas em mercados fora dos Estados Unidos. Nesse ano, seu lucro operacional foi de USD 88,8 bilhões. Desse lucro, ela distribuiu USD 76 bilhões aos seus acionistas, a imensa maioria cidadãos, empresas e instituições financeiras residentes ou sediadas nos Estados Unidos, mas não sem antes recolher USD 10,1 bilhões de impostos nos Estados Unidos e USD 2,7 bilhões, em todos os demais países onde operam seus aplicativos Google, YouTube etc. Isto é, do lucro que obtém operando livremente em todo o mundo, a Alphabet recolheu 79% para os cofres do Tesouro estadunidense e apenas 21% para os cofres dos demais países (de onde extrai 54% das suas receitas).

Nesse mesmo ano de 2021, as receitas da Meta somaram USD 117,9 bilhões. Dessas receitas, 41% vieram do mercado estadunidense, 24% da Europa, 22,7% do Extremo Oriente e 11,7% do chamado, pela Meta, “resto do mundo”. Nesse ano, seu lucro operacional foi de USD 46,7 bilhões. Desse lucro, a Meta distribuiu USD 39,4 bilhões para os seus acionistas, a imensa maioria cidadãos, empresas e instituições financeiras residentes ou sediadas nos Estados Unidos, mas não sem antes recolher USD 5,5 bilhões de impostos nos Estados Unidos e USD 1,8 bilhão nos demais países onde se pode acessar a seus aplicativos Facebook, Instagram etc. Isto é, do lucro que obtém operando livremente em todo o mundo, a Meta recolheu 75,5% para os cofres do Tesouro dos Estados Unidos e apenas 24,5% para os cofres dos demais países (de onde extrai 59% das suas receitas).

Esses números devem ser apenas a ponta de um gigantesco iceberg que abaixo da superfície opaca do mercado de dados, suga uma enorme riqueza de todo o mundo na direção da economia dos Estados Unidos. Como escreveu, em matéria de capa, The Economist, em edição de abril de 2017, os “dados são o petróleo do século XXI”. Quer dizer, como o petróleo no século XX, os dados estão se tornando ou já se tornaram a maior fonte de riqueza, e também de poder, deste século. Assim como o petróleo foi objeto de guerras, golpes de estado, até assassinatos políticos, os dados podem também vir a ser objeto de ferozes disputas semelhantes. Assim como o controle das fontes de petróleo deu origem a corporações do porte da Standard Oil, British Petroleum, Shell, os dados deram origem a corporações do porte da Alphabet, Meta, Amazon, algumas outras.

A internet foi desenvolvida nos Estados Unidos, nos anos 1970-80, com apoio do Pentágono para atender a necessidades da segurança nacional dos Estados Unidos. Nos anos 1990, década auge das políticas neoliberais, se espraia pelo mundo como um sistema inteiramente apoiado em iniciativas de entidades não governamentais, dentro e fora dos Estados Unidos – como se não existissem estados nacionais e fronteiras nacionais. O próprio governo estadunidense delega a organização e comando da internet a uma ONG – a ICANN – que passa a estabelecer as regras de endereçamento e acesso ao redor do mundo. E tudo acontece como se fosse tão natural quanto o Oceano Atlântico. De repente, um computador no Brasil se conecta a um computador nos Estados Unidos e, shazam!, habemus internet! Claro, essa conexão faz uso de um sistema telefônico. Paga-se o custo da transmissão. Nenhuma preocupação com o que pode estar sendo transmitido…

Vem dessa mesma época fatos aparentemente inócuos, cujas consequências podemos avaliar hoje. No Brasil, Sergio Mota, o ministro privatizante das Comunicações no governo neoliberal de FHC, baixa, em 1995, a “norma 4”, pela qual a internet é declarada “serviço de valor adicionado”, vedando ao Sistema Telebrás, ainda estatal, oferecê-la pelas suas próprias redes. Numa palavra: caberia a agentes privados desenvolver a internet no Brasil. Em 1996, nos Estados Unidos, o Congresso aprova a “Lei de Decência” (“Decency Act”), cuja Seção 230 declarava que os “intermediários” da internet não deviam ser responsabilizados pelos conteúdos neles postados pelos seus usuários. Aparentemente, a lei “de decência” buscava garantir a “liberdade de expressão” (punindo os excessos a posteriori, dependendo dos tribunais) e, ao mesmo tempo, isentar de problemas empresas que prestavam o serviço técnico de permitir o acesso dos cidadãos à internet.

Na década de 1990, quando o acesso à internet dependia de um serviço meramente técnico, tal lei podia fazer sentido. Hoje, está sendo questionada até na Suprema Corte dos EUA.
Mas esse princípio que atende pelo horroroso nome de “inimputabilidade dos intermediários”, no Brasil adotado no artº 19 do nosso Marco Civil da Internet, teve outra grande consequência: segundo o consultor estadunidense Christian M. Dippon, a existência, hoje, de corporações do tamanho da Amazon, Alphabet, Meta e outras, muito deve à “proteção” que lhes dá a Seção 230. Ele adverte que se, no mundo, começarem a avançar leis ou regulamentos que anulem os efeitos, em outros países, da 230, a economia dos EUA poderá sofrer um golpe razoável. Segundo seus cálculos, os preços para os consumidores estadunidenses desses serviços subiriam; as receitas dos serviços de “nuvem” e de publicidade cairiam em 7,8%; poderiam ser perdidos 425 mil postos de trabalho e o PIB poderia perder 44 bilhões de dólares, anualmente. “Os intermediários da internet são cruciais tanto para a economia doméstica quanto para as exportações dos Estados Unidos para o resto do mundo”, confessa Dippon.

Em resumo, debater a regulação da internet, sobretudo rever a real falta de regulação que hoje permite a essas chamadas big techs não apenas deterem total poder sobre o que se fala, ou não se fala, na internet, mas também enriquecerem e fortalecerem política e militarmente ainda mais os Estados Unidos (como nos mostrou Edward Snowden), não se resume a encontrar algum jeito de impedir a disseminação de “fake news”, “discurso de ódio” ou “desinformação” através do YouTube ou WhatsApp. Há muito mais em jogo: produção de riquezas, geração de empregos, desenvolvimento tecnológico, evasão fiscal, geopolítica. O debate, no Brasil, por enquanto, permanece apenas no cocuruto do iceberg.

Instituto Telecom. Terça-feira, 28 de março de 2023

Artigos relacionados

Tags

Compartilhe

Comente

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *