O lobby da Anatel e as plataformas digitais

ago 29, 2023 by

A advogada Flávia Lefèvere, integrante da Coalizão Direitos na Rede participou, no dia 18 de agosto, da mesa que discutiu a Regulação de Plataformas Digitais e Proteção de Dados Pessoais, no 14º Seminário de Proteção à Privacidade e aos Dados Pessoais, organizado pelo CGI.br e NIC.br

Ela fez diversas reflexões que iremos compartilhar abaixo:

a) “Considerando que um dos principais pontos de impasse para a aprovação do PL 2630/2020 tem sido a definição de qual modelo de regulação será adotado, vou trazer reflexões no sentido de demonstrar que as agências reguladoras não contam com cabedal necessário para dar conta dos diversos direitos e suas vertentes de efeitos nos campos econômico, social, educacional, cultural e de direitos fundamentais afetados pelas atividades das plataformas”.

b) “Os serviços prestados pelas plataformas digitais trazem riscos intrínsecos especialmente pelo fato de que as atividades normalmente desenvolvidas por essas empresas, que atuam com poder de controle e abrangência inéditos nos campos da comunicação, informação, publicidade e propaganda política, com uso intenso de big data e Inteligência Artificial, implicam, por sua natureza, em riscos para direitos sociais, políticos e econômicos, individuais, coletivos e difusos e para as estruturas legais e institucionais dos países, com efeitos antiestruturais, como nos ensina a Letícia Cesarino, no seu importante livro “O mundo do avesso – Verdade e política na era digital”, bem como Shoshana Zuboff – Capitalismo de Vigilância, Eugeny Morozov – A ascensão dos dados e a morte da política”

c) “Foi no ambiente econômico com forte viés de liberalização econômica, desregulamentação, com o Estado abdicando em grande medida do seu papel de garantidor do estado de bem estar social, que as empresas dominantes no campo das TICs se desenvolveram, ganhando proporções nunca vistas e resistindo sempre às iniciativas de retomada pelo Estado do seu papel de regulador, como temos assistido no processo de discussão do PL 2630, entre outras iniciativas internacionais”.

d) “Foram criados novos aparatos institucionais, com a finalidade de se implementar modelo adaptado à essa nova etapa do capitalismo, nascida do auge do neoliberalismo. As agências reguladoras surgem, então, no contexto do que a doutrina denomina de “capitalismo regulatório”, dadas as novas prioridades dos governos na gestão econômica. No Brasil, o histórico de atuação das agências reguladoras, criadas com o objetivo de conferir segurança jurídica para os agentes econômicos interessados nas privatizações que passaram a ocorrer a partir dos anos 1990 e equilíbrio entre interesses desses agentes e consumidores e sociedade, revela graves conflitos instaurados nesses últimos 28 anos, seja por ação e por omissão desses organismos, com forte predomínio nos processos técnicos promovidos pelas agências correspondentes à construção do arcabouço normativo voltado para orientar o funcionamento dos diversos setores”.

e) “Entre os problemas que emperram uma atuação das agências afinadas com o interesse público está o fato de que, com muita frequência, os agentes públicos ou vêm de empresas privadas ou saem da agência e vão trabalhar nas empresas reguladas, comprometendo a produção de normas que deveriam estar voltadas para a universalização dos serviços públicos, para a modicidade de tarifas e preços viabilizando o acesso e a garantia de direitos fundamentais e sociais como a saúde e acesso a outros serviços essenciais, inclusive o SCI com desigualdade tão profunda, como mostram os dados do CETIC.br.”

f) “A situação de enorme desigualdade no acesso aos serviços de telecomunicações e acesso a Internet no Brasil, a insuficiência de infraestrutura de redes depois de mais de 24 anos de privatização, a perda bilionária de bens reversíveis relativos às concessões da telefonia fixa, o debacle da Oi, a situação caótica da saúde privada, desrespeitos reiterados a direitos econômicos dos consumidores de energia elétrica, estão entre os vultosos prejuízos decorrentes de processos claros de captura das agências, que colocam o Brasil em posição de desigualdade vergonhosa”.

g) “E considerando o tema mais atual da regulação das plataformas, temos assistido a Anatel empenhada em fazer lobby aberto e em certa medida questionável para se tornar o órgão regulador das plataformas digitais, a despeito dos incontornáveis limites legais para que isto ocorra, tendo em vista suas atribuições estabelecidas pela LGT”.

h) “Destaco que a doutrina cunhou a expressão ‘captura’ para indicar a situação em que as agências se transformam em via de proteção e de privilégios para os setores empresariais regulados e perdem a condição de autoridade comprometida com a realização do interesse coletivo, passando a produzir atos destinados a legitimar a realização dos interesses privados e divorciados do interesse público (..) O fenômeno da captura no Brasil já foi reconhecido, inclusive, por Tribunais do país em diversas ações públicas e por decisões do TCU”.

i) “O modelo de agência reguladora – sustentáculo do neoliberalismo, ainda que se propague sua autonomia e independência, historicamente tem atuado de forma capturada pelos interesses privados, sendo claramente inadequado para a regulação das plataformas digitais, interferindo de forma determinante como entraves para a efetividade de direitos fundamentais e sociais e para o desenvolvimento do país.

j) “Sendo assim, vejo muito mais sentido numa estrutura regulatória composta por um órgão representativo das empresas, por um Conselho Interministerial e pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br)”.

k) “Um modelo centralizado de regulação e com baixa representação democrática, como é o caso das agências em virtude de suas configurações legais, não dará conta de regular devidamente para garantir direitos em tão largo espectro”.

l) “(..) a proposta apresentada pela Comissão Especial de Direito Digital da do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, parece mais adequada às necessidades de regulação, ao propor o Sistema Brasileiro de Regulação de Plataformas Digitais tripartite, composto por um Conselho de Políticas Digitais, CGI.br e Entidade de Autorregulação”.

m) “Divirjo apenas quanto à composição do conselho, pois entendo que ele deva ser mais amplo, integrado por diversos ministérios (…) Ministérios da Justiça, Direitos Humanos, Educação e Cultura, Saúde, Trabalho, Casa Civil – que hoje conta com a Secretaria de Políticas Digitais, Comunicações, CGI.br, tendo em vista as atribuições que recebeu pelo Marco Civil da Internet, e também pela ANPD, tendo em vista o caráter técnico altamente especializado do acompanhamento da exploração de dados pessoais por empresas e setores públicos. Importante que o Conselho conte também com representação da sociedade civil. Quanto ao papel a ser desenvolvido pelo CGI.br, entendo que a proposta apresentada pelo PL 2630/2020, atribuindo ao Comitê o papel de promover e organizar os debates em torno do Código de Condutas voltado para orientar a elaboração dos termos de serviços das plataformas digitais garantirá caráter multissetorial imprescindível, quando se trata de atividades com impacto em tantos setores.”

O Instituto Telecom concorda com essas reflexões de Flávia Lefèvre inclusive quando ela destaca que os debates sobre a estrutura regulatória para lidar com as plataformas digitais, inteligência artificial e proteção de dados deve se dar com o envolvimento intenso da sociedade civil.

Instituto Telecom, Terça-feira, 29 de agosto de 2023
Marcello Miranda, especialista em Telecom

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